segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Ficha Limpa subverte princípios essenciais

O clamor popular tem triste memória - da condenação de Jesus às fogueiras da Inquisição e perseguições de governos autoritários. Lamentável quando um Estado Constitucional a ele se submete, entronizando a emoção no lugar da isenção. Por melhores que sejam as intenções, precedentes poderão abrir os temíveis portões da insegurança jurídica e franquear agressões aos valores tutelados pelas cláusulas pétreas.

Abstraídas as boas intenções da Lei da Ficha Limpa, não há como sua aplicação imediata não subverter o processo eleitoral mediante restrições ao exercício de direitos políticos e ao arrepio de princípios caríssimos do Direito, tais quais a irretroatividade da norma jurídica, a anterioridade anual, a presunção de inocência e a coisa julgada. São eles que garantem a estabilidade dos direitos perante as pretensões concebidas pelo legislador, impedem que as agressões às normas sejam manejadas ao sabor das conveniências ou das decisões casuísticas, proíbem condenações sem que antes advenha sentença condenatória definitiva, coíbem a aprovação de sanções após o Judiciário haver se pronunciado sem a imposição de restrições ao exercício de direito político.

Por tanto afetar o processo eleitoral, justifica-se não categorizar a Lei da Ficha Limpa como regra sobre inelegibilidade, mas como arremedo normativo com eficiência para interferir nas candidaturas e fazer o Judiciário incidir, sobre o status de cidadão, um direito político negativo, ao passo que o Direito Eleitoral consagra a plenitude dos direitos positivos e o respeito à soberania popular. E, na colisão entre os princípios da soberania popular e os da probidade, merecem preponderar os primeiros.

Sob o pretexto de pressões para sanear o processo político, não podemos afrontar o ordenamento jurídico, a dignidade humana e a vontade popular. Do contrário, estaremos a fomentar a insegurança jurídica e a vulnerabilidade do Estado Constitucional, mesmo que ao amparo das melhores intenções. Já não nos engrandece ser a única democracia que precisa de uma lei para dizer que os políticos precisam ter ficha limpa, e depurá-los ao preço de renegar princípios paradigmáticos do grau de civilidade de uma nação. Pois é o próprio povo quem deve julgar a qualidade do seu voto, nunca um tribunal – lição expressa no simbólico impasse protagonizado pelo Supremo. Afinal, são 136 milhões de eleitores à espera de uma resposta que não veio. O guardião da ordem constitucional parece haver esquecido que a história é pródiga de julgadores que seguiram o clamor, e não deixaram saudade ou exemplo a ser seguido. O Ministro Cezar Peluso bem que advertiu que um tribunal que assim julga “não merece nem o respeito do povo”.

(por Erick Wilson Pereira, no conjur.com.br)