segunda-feira, 31 de março de 2014

31 de março. Mãos amarradas e corações partidos*

Caros amigos!
É-me sumamente indigesto escrever sobre a ditadura militar por razões pessoais devido a minha atuação no CASO DAS MÃOS AMARRADAS como assistente da acusação e procurador da viúva do Sargento Manoel Raimundo Soares, barbaramente torturado e assassinado por agentes da repressão. Mas como bem afirmou o amigo e magistrado João Baptista Herkenhoff, em seu artigo intitulado - Lembranças de 64 - Mencionar estes fatos é importante, principalmente para conhecimento dos jovens, a fim de que compreendam o valor da Democracia e da Liberdade”.

O Sgtº Soares integrava uma facção militar legalista que almeja o retorno do presidente João Goulart deposto em 1964. De todas as informações e documentos que tive acesso em mais de trinta anos, nunca exsurgiu nada que indicasse que ele fosse comunista e envolvido com propósitos de implantar um regime totalitário de esquerda no Brasil. Tive oportunidade de conversar pessoalmente com alguns ex-colegas de farda integrantes da mesma facção e eles confirmaram a mesma coisa.

Ninguém passou incólume por esse caso que eu assumi já em andamento, porém, já fazia uns cinco anos que o processo estava parado, advogados se revezavam e largavam, juízes se davam por impedidos, quando o processo era redistribuído o juiz pedia licença médica, era a famosa “batata quente” que ninguém queria.

Eu peguei e levei até o fim, mas me custou muito caro. Esse processo por si só se constituiu num grande fardo para todos que nele interagiram, a começar pela assistência judiciária gratuita, a alternância de advogados e magistrados na espinhosa condução dessa lide. Manuseando os autos percebe-se o cansaço, o esgotamento de todos os operadores envolvidos, por isso, os advogados largavam e os juízes, muitos, certamente por temor ou até por ameaças sofridas, pois, era uma época muita complicada para o exercício da advocacia e da jurisdição.

Não foram poucos os dissabores que sofri por causa do processo, cuja tensão e temor resultaram em problemas de hipertensão em minha esposa, grávida de gêmeos, que resultou em aborto espontâneo.

Por medo, parentes se afastaram de mim, amigos me viraram as costas, pessoas mal-intencionadas propagavam boatos de minha morte pelo DOI-CODI já que um coronel havia jurado me matar a época. Eu era seguido nas ruas, viaturas discretas amanheciam estacionadas em frente a minha casa, eram muitas as ameaças e as pressões para que eu desistisse do caso.

Meus pais tinham um vizinho, pessoa de quem até gostávamos por tê-lo em bom conceito, que era comissário de polícia civil lotado no DOPS. Esse cidadão, não sei se de fato preocupado com a minha vida e segurança ou “cobra mandada”, seguidamente advertia minha Mãe dos perigos que eu corria. Mesmo que agisse com boas intenções acabou por levá-la ao desespero, ela vivia chorando e implorando para que eu abandonasse o caso, coisa que jurei jamais fazer.

Havia também a turma do bem, militares que me ajudavam, forneciam informações, inclusive, fui alertado por um Oficial da Marinha de Guerra que o processo seria “roubado” do extinto Tribunal Federal de Recursos em Brasília e de fato isso quase ocorreu, enviei por TELEX ao Presidente do Tribunal, um requerimento de busca e apreensão dos autos e consegui abortar a operação em curso de desaparecimento do processo que já estava quase fora do prédio do Tribunal.

A imprensa também me ajudava muito, devo muito aos jornalistas gaúchos, os quais homenageio aqui nas pessoas de José Mitchell e Suê Duarte com os quais tive mais convivência.

Eu tive o privilégio de conhecer muita coisa da vida do Sgtº Soares por intermédio da sua esposa e de seus amigos, ex-militares, ex-guerrilheiros, os quais conheci pessoalmente e mantive correspondência epistolar por muito tempo.

Quando o Dr. Barbosa, promotor de justiça que sucedeu o meu amigo Antonio Dionísio Lopes na chefia da coordenadoria das promotorias criminais, ele intentou a reabertura do processo criminal tendo-me como assistente da acusação, e foram intimados e vieram depor esses amigos do Sargento Soares e me recordo bem que no final da audiência o Dr. Barbosa me disse: “percebesses como os olhos deles brilharam quando falaram do companheiro que “tombou em combate”, percebesses os gestos, a eloquência?

O promotor arrematou dizendo-me que nunca havia visto nada igual, e nem eu, com certeza ambos ficamos muito impactados com o idealismo, a fibra, a coragem daqueles homens destemidos.

Pelos relatos do próprio Sargento Soares nas cartas enviadas à esposa, corroborados por relatos de pessoas que estiveram presas junto com ele, sobressai histórias encantadoras. Uma delas é que ele cantava o hino nacional quando estava sendo torturado. A outra é que ele, como militar, entendia aquilo como “mazelas da guerra” de certa forma, assim que nunca ofendeu com palavras seus algozes que por fim, passado um tempo, alguns acabaram se afeiçoando a ele, e, como ele mencionou em seu próprio relato, passou a ter alguns privilégios, como por exemplo, uma escova de dente.

Foi há alguns desses novos “amigos” que ele confiou as cartas à esposa, nem todas chegaram, mas as que foram postadas clandestinamente e chegaram, foram suficientes para retratar a dura realidade do cárcere, o frio, a pouca comida, doença sem atendimento médico, sem mencionar a tortura, como ele próprio descreveu, na primeira semana de sua prisão ilegal, foi submetido a um “duro tratamento”.

Há também uma peculiaridade que emerge das cartas enviadas do cárcere à esposa, a linda e comovente história de amor entre o casal relatada com ênfase na sentença e no acórdão da justiça federal.

Devemos muito também ao Dr. Cândido Alfredo Silva Leal Junior, hoje Desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o processo só deslanchou depois que ele assumiu como juiz do caso, e, como eu, não largou mais.

O Estado do Rio Grande do Sul tem uma dívida histórica com a sociedade, pois, até hoje não esclareceu a contento essa morte.

Fico ao dispor de todos que desejarem mais informações sobre o CASO DAS MÃOS AMARRADAS E CORAÇÕES PARTIDOS
inclusive, peças raras dos autos do processo tombado como patrimônio histórico da humanidade, como, por exemplo, o Relatório Tovo.

Só o amor dura até a morte!

*Dr. João-Francisco Rogowski, por e-mail, na Confraria dos Luminares.