Caros
amigos!
É-me sumamente indigesto
escrever sobre a ditadura militar por razões pessoais devido a minha atuação no CASO DAS MÃOS AMARRADAS como
assistente da acusação e procurador da viúva do Sargento Manoel Raimundo Soares,
barbaramente torturado e assassinado por agentes da repressão. Mas como bem
afirmou o amigo e magistrado João Baptista Herkenhoff, em seu artigo intitulado
- Lembranças de 64 - “Mencionar estes fatos é
importante, principalmente para conhecimento dos jovens, a fim de que
compreendam o valor da Democracia e da Liberdade”.
O Sgtº Soares
integrava uma facção militar legalista que almeja o retorno do presidente João
Goulart deposto em 1964. De todas as informações e documentos que tive acesso em
mais de trinta anos, nunca exsurgiu nada que indicasse que ele fosse comunista e
envolvido com propósitos de implantar um regime totalitário de esquerda no
Brasil. Tive oportunidade de conversar pessoalmente com alguns ex-colegas de
farda integrantes da mesma facção e eles confirmaram a mesma coisa.
Ninguém passou
incólume por esse caso que eu assumi já em andamento, porém, já fazia uns cinco
anos que o processo estava parado, advogados se revezavam e largavam, juízes se
davam por impedidos, quando o processo era redistribuído o juiz pedia licença
médica, era a famosa “batata quente” que ninguém queria.
Eu peguei e
levei até o fim, mas me custou muito caro. Esse processo por si só se constituiu
num grande fardo para todos que nele interagiram, a começar pela assistência
judiciária gratuita, a alternância de advogados e magistrados na espinhosa
condução dessa lide. Manuseando os autos percebe-se o cansaço, o esgotamento de
todos os operadores envolvidos, por isso, os advogados largavam e os juízes,
muitos, certamente por temor ou até por ameaças sofridas, pois, era uma época
muita complicada para o exercício da advocacia e da jurisdição.
Não foram poucos
os dissabores que sofri por causa do processo, cuja tensão e temor resultaram em
problemas de hipertensão em minha esposa, grávida de gêmeos, que resultou em
aborto espontâneo.
Por medo,
parentes se afastaram de mim, amigos me viraram as costas, pessoas
mal-intencionadas propagavam boatos de minha morte pelo DOI-CODI já que um
coronel havia jurado me matar a época. Eu era seguido nas ruas, viaturas
discretas amanheciam estacionadas em frente a minha casa, eram muitas as ameaças
e as pressões para que eu desistisse do caso.
Meus pais tinham
um vizinho, pessoa de quem até gostávamos por tê-lo em bom conceito, que era
comissário de polícia civil lotado no DOPS. Esse cidadão, não sei se de fato
preocupado com a minha vida e segurança ou “cobra mandada”, seguidamente
advertia minha Mãe dos perigos que eu corria. Mesmo que agisse com boas
intenções acabou por levá-la ao desespero, ela vivia chorando e implorando para
que eu abandonasse o caso, coisa que jurei jamais fazer.
Havia também a
turma do bem, militares que me ajudavam, forneciam informações, inclusive, fui
alertado por um Oficial da Marinha de Guerra que o processo seria “roubado” do
extinto Tribunal Federal de Recursos em Brasília e de fato isso quase ocorreu,
enviei por TELEX ao Presidente do Tribunal, um requerimento de busca e apreensão
dos autos e consegui abortar a operação em curso de desaparecimento do processo
que já estava quase fora do prédio do Tribunal.
A imprensa
também me ajudava muito, devo muito aos jornalistas gaúchos, os quais homenageio
aqui nas pessoas de José Mitchell e Suê Duarte com os quais tive mais
convivência.
Eu tive o
privilégio de conhecer muita coisa da vida do Sgtº Soares por intermédio da sua
esposa e de seus amigos, ex-militares, ex-guerrilheiros, os quais conheci
pessoalmente e mantive correspondência epistolar por muito tempo.
Quando o Dr.
Barbosa, promotor de justiça que sucedeu o meu amigo Antonio Dionísio Lopes na
chefia da coordenadoria das promotorias criminais, ele intentou a reabertura do
processo criminal tendo-me como assistente da acusação, e foram intimados e
vieram depor esses amigos do Sargento Soares e me recordo bem que no final da
audiência o Dr. Barbosa me disse: “percebesses como os olhos deles brilharam
quando falaram do companheiro que “tombou em combate”, percebesses os gestos,
a eloquência?”
O promotor
arrematou dizendo-me que nunca havia visto nada igual, e nem eu, com certeza
ambos ficamos muito impactados com o idealismo, a fibra, a coragem daqueles
homens destemidos.
Pelos relatos do
próprio Sargento Soares nas cartas enviadas à esposa, corroborados por relatos
de pessoas que estiveram presas junto com ele, sobressai histórias encantadoras.
Uma delas é que ele cantava o hino nacional quando estava sendo torturado. A
outra é que ele, como militar, entendia aquilo como “mazelas da guerra” de certa
forma, assim que nunca ofendeu com palavras seus algozes que por fim, passado um
tempo, alguns acabaram se afeiçoando a ele, e, como ele mencionou em seu próprio
relato, passou a ter alguns privilégios, como por exemplo, uma escova de
dente.
Foi há alguns
desses novos “amigos” que ele confiou as cartas à esposa, nem todas chegaram,
mas as que foram postadas clandestinamente e chegaram, foram suficientes para
retratar a dura realidade do cárcere, o frio, a pouca comida, doença sem
atendimento médico, sem mencionar a tortura, como ele próprio descreveu, na
primeira semana de sua prisão ilegal, foi submetido a um “duro
tratamento”.
Há também uma
peculiaridade que emerge das cartas enviadas do cárcere à esposa, a linda e
comovente história de amor entre o casal relatada com ênfase na sentença e no
acórdão da justiça federal.
Devemos muito
também ao Dr. Cândido Alfredo Silva Leal Junior, hoje Desembargador do
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o processo só deslanchou depois que ele
assumiu como juiz do caso, e, como eu, não largou mais.
O Estado do Rio
Grande do Sul tem uma dívida histórica com a sociedade, pois, até hoje não
esclareceu a contento essa morte.
Fico ao dispor
de todos que desejarem mais informações sobre o CASO DAS MÃOS AMARRADAS E
CORAÇÕES PARTIDOS,
inclusive, peças raras dos autos do processo
tombado como patrimônio histórico da humanidade, como, por exemplo,
o Relatório Tovo.
Só o amor dura
até a morte!
*Dr. João-Francisco Rogowski, por e-mail, na Confraria dos Luminares.