sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

TJ-RS delibera contra a Lei no caso do juiz do processo da boate Kiss e poderá haver anulação de atos judiciais futuramente

A defesa de Elissandro Spohr, o Kiko, sócio da boate Kiss, acusado das 242 mortes após incêndio na casa noturna, quer mudar os rumos do processo criminal. Uma das estratégias é pleitear o interrogatório de todas as 636 vítimas identificadas como sobreviventes da tragédia, o que prorrogaria a fase de instrução em três anos e meio.
A outra, ainda mais polêmica, é tentar anular os trabalhos realizados fora de Santa Maria pelo juiz Ulysses Fonseca Louzada, titular da 1ª Vara Criminal local e responsável pelo processo, sob o argumento de que o magistrado não teria competência jurisdicional para atuar em outras comarcas.
Os pedidos do advogado Jader Marques foram indeferidos pela juíza Karla Aveline de Oliveira — em substituição ao juiz Louzada, que está em férias — mas a tendência é serem discutidos até no Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, podendo frear ou atrasar o andamento do caso.
O cronograma da Justiça prevê o interrogatório de 217 pessoas — 117 sobreviventes do incêndio, 71 testemunhas de defesa e de acusação e 29 peritos criminalísticos. Os relatos à Justiça dos sobreviventes começaram em 28 de junho e, até agora, já foram colhidos 92 depoimentos. A julgar pelo ritmo atual de trabalho, esta fase se encerraria em setembro. Mas, para ouvir todas as 636 vítimas seriam necessários mais três anos e meio — encerrando, apenas esta etapa, em junho de 2017.
No entendimento da juíza e do Ministério Público, é desnecessário colher depoimentos de todas as vítimas "porque perguntas e respostas tornaram-se repetitivas e nada de diferente tem sido acrescentado". Conforme despacho da juíza, o importante é checar a existência das vítimas. "Tal desiderato pode ser atingido através de ofício à polícia para que realize essa diligência, evitando, dessa forma, consumo desnecessário de tempo e procrastinação injustificada do andamento processual" diz o texto. Em outras palavras, a intenção da magistrada é evitar atrasos na instrução.
O segundo pleito negado pela juíza diz respeito ao pedido de Marques para anular audiências conduzidas por Louzada fora de Santa Maria. Até agora, foram oito em seis municípios — Porto Alegre, Uruguaiana, Frederico Westphalen, Passo Fundo, Rosário do Sul e Horizontina. Nestas cidades, foram ouvidos relatos de 10 sobreviventes do incêndio na boate.
O argumento do advogado se baseia no artigo 222 do Código de Processo Penal (CPP), que prevê o interrogatório de testemunha residente em outra comarca por meio de videoconferência ou via carta precatória pelo juiz da comarca onde mora a testemunha.
O advogado, que também pediu que as próximas audiências sejam a portas fechadas — outra solicitação negada pela juíza —, afirma que a demora no andamento do processo não é interessante ao seu cliente. E sustenta:
— Todos os requerimentos formulados possuem base em artigos do CPP. Ou seja, estão requerendo o cumprimento do que está previsto em lei. A lei diz que as vítimas sejam ouvidas, sem fazer distinção sobre o tamanho do processo. Apresentei esses pedidos agora porque, depois, lá na frente, o risco de ser perder o trabalho é maior, com prejuízo para todas as partes.
A caravana conduzida por Louzada tem o amparo do Tribunal de Justiça do Estado (TJ). Em outubro, o Conselho da Magistratura (Comag) do TJ chancelou a instauração de regime de exceção na 1ª Vara Criminal de Santa Maria, autorizando o juiz a se afastar da sua comarca para comandar a coleta de depoimentos além dos seus limites jurisdicionais.
Ao negar o pedido de Jader, a juíza lembrou a autorização do Comag — ao qual compete apreciar as propostas relativas ao planejamento da organização judiciária —, e a Lei Estadual nº 7.356/80, conhecido como Código de Organização Judiciária, que define a composição e a competência dos órgãos judiciários estaduais. A magistrada também citou que seria inviável para juízes de outras comarcas se familiarizarem com o processo apenas para uma ou poucas audiências — o caso soma 11 mil páginas, sem contar anexos.
Procurado por ZH, Louzada se mostrou surpreso com a informação, mas não quis se pronunciar. A colegas, teria explicado:
— Estou autorizado pelo TJ a colher depoimentos e realizar audiências em outras cidades. O processo é um só e ouvimos testemunhas em outros locais para poder acelerar os procedimentos. Não vejo óbice, é pelo bom andamento do processo. O ideal é que cada juiz cuidasse do seu processo, ouvindo suas próprias testemunhas.
Como o pedido da defesa pode impactar os prazos
O cronograma da Justiça prevê o interrogatório de 217 pessoas. São 117 sobreviventes do incêndio, 71 testemunhas de defesa e de acusação e 29 peritos criminalísticos.
Os relatos à Justiça dos sobreviventes da tragédia começaram em 28 de junho.
Até agora, já foram colhidos 92 depoimentos.
Com base no ritmo atual de trabalho, esta fase se encerraria em setembro de 2014.
Para ouvir todas as 636 vítimas, seriam necessários mais três anos e meio.
Portanto, esta etapa se encerraria apenas em junho de 2017.

Criminalistas surpresos com ordem do TJ


A autorização para os deslocamentos do juiz Ulysses Fonseca Louzada surpreendeu criminalistas consultados por Zero Hora.
— Trata-se de uma prática inusitada e questionável. Não existe previsão no CPP para isso. E a autorização do Conselho da Magistratura não irá impedir que se trave uma complexa discussão nos tribunais superiores, com risco real e concreto de que todos esses atos sejam anulados — avalia o professor universitário e doutor em Direito Penal Aury Lopes Junior.
O também professor em Direito Penal Andrei Zenkner acrescenta:
— Ainda que autorizado pelo TJ, um juiz não pode, em detrimento das regras contidas no CPP e do princípio do juiz natural, receber uma jurisdição itinerante. Essa é uma nulidade possível e plausível, que sequer dependeria de demonstração de prejuízo.
O coordenador do Departamento de Direito Penal da PUCRS, Alexandre Wunderlich, classificou a medida de "absolutamente incomum".
— O que questiono é o TJ tirar a competência de um juiz em detrimento de outro em um caso específico. Não se pode escolher casos. Na queda do avião da TAM (em São Paulo, em 2007, que resultou em 199 mortes) foi necessário interrogar pessoas em várias partes do país e não teve isso.
(Humberto Trezzi)