A demora do Judiciário em concluir os processos fez com que, dos mais de dois bilhões de dólares que as autoridades brasileiras conseguiram bloquear em instituições financeiras no exterior através dos acordos de cooperação jurídica internacional assinados, o país recuperasse menos de cinco milhões de dólares. A afirmação é do delegado federal Ricardo Andrade Saadi, atualmente atuando como diretor do Departamento de recuperação de Ativos e Cooperação Judiciária Internacional (DRCI) do ministério da Justiça. Ele palestrou nesta quinta-feira (26/04) em evento organizado pela Associação de Delegados da Polícia Federal no Rio de Janeiro.
Segundo Saadi, parte do montante bloqueado em investigações de crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas já foi até mesmo liberada, mas o Brasil não conseguiu recebê-lo de volta. Sem que haja sentença transitada em julgado, os demais países não repassam o dinheiro ao país que fez o pedido.
“Entrei na Polícia Federal em 2002, como muitos de vocês. Nenhuma das operações [policiais] de que participei transitou em julgado até hoje. Muitas delas foram resolvidas pela polícia em meses. Algumas foram resolvidas pela Justiça de primeira instância em um ano ou um ano e meio, mas estão paradas nos tribunais. Outras efetivamente pararam na Justiça de primeira instância”, desabafou o diretor do DRCI.
Porém, ele não responsabiliza os magistrados pela demora, mas sim o sistema judiciário: “A culpa é dos juízes, desembargadores ou ministros? Não. A culpa é do sistema. O nosso sistema permite uma série de recursos, de ferramentas, de prazos que os criminosos que têm condições de contratar bons advogados usam. As brechas ajudam a postergar”, disse.
Saadi citou números do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça, relacionados a crimes de corrupção. Segundo ele, em dezembro passado, para uma população carcerária de 514,5 mil pessoas, apenas 575 delas respondiam pelo crime previsto no artigo 333 do Código Penal (corrupção ativa). Ou seja, 0,11% dos presos foram acusados ou condenados por corromper funcionários públicos. Já os encarcerados por corrupção passiva (artigo 317 do CP) estão em quantidade ainda menor: 57, ou 0,01% do total de presos.
“Efetivamente o combate ao crime organizado se dá não mais por meio da prisão das pessoas, mas principalmente por meio da descapitalização das atividades”, explicou. “Mais vale tirar os bens da organização criminosa, tirar seu combustível, do que simplesmente prender o criminoso.”
Ele compara o caso às prisões de traficantes que, segundo ele, têm o mesmo resultado fraco em relação ao objetivo de coibir a prática. “Não acontece nada, pois, no dia seguinte, tem alguém no lugar dele e a atividade continua existindo. O criminoso de mais alto poder aquisitivo, com essas brechas da lei, contrata bons advogados e não acontece nada. Ficará preso um, dois ou três dias e vai continuar com as suas atividades até que o processo seja julgado, pela questão da presunção da inocência.”
“Tirar o combustível” da organização criminosa apenas dentro do país também não resolve, segundo o delegado. “A organização criminosa pratica o crime no Brasil, mas geralmente seus recursos são guardados em outros países, como, por exemplo, na Suíça, nos Estados Unidos e em alguns paraísos fiscais.”
E cita exemplos: “de quantas e quantas operações policiais nós já participamos na Delefin [Delegacia de Combate aos Crimes Financeiros] de São Paulo, nas quais apreendemos de 20 a 30 carros de luxo, bloqueamos contas correntes no Brasil em valores entre cinco a dez milhões de reais, saíamos todos felizes no dia da operação. Depois, analisando a documentação apreendida, os extratos, víamos que o dinheiro era apenas ‘brinde’ da organização criminosa. O grande volume deste dinheiro estava no exterior, em paraísos fiscais, em contas de off shores”.
Nesse aspecto, alertou seus colegas delegados: a Polícia Federal pouco tem feito para bloquear bens e valores que estão em outros países. Ele apresenta os dados levantados pelo DRCI que mostram esta “baixa produtividade”. Segundo os registros referentes aos pedidos de cooperação jurídica internacional nos casos de crimes de corrupção nos últimos dez anos, eles totalizaram aproximadamente cem solicitações. Destas, apenas cinco foram feitas diretamente por delegados da Polícia Federal. Da Justiça Federal foram contabilizados 50 pedidos, e do Ministério Público Federal, 35 pedidos. Segundo ele, por ser responsável pela investigação, a Polícia Federal é quem deveria fazer os pedidos de cooperação internacional para conseguir provas no exterior e também o bloqueio de recursos.
De acordo com levantamentos feitos pelo delegado na DRCI, os motivos para o baixo índice de pedidos de cooperação são: o desconhecimento, pelas autoridades policiais, de como fazer um pedido; a dificuldade dos que conhecem a matéria e sabem como fazer os pedidos de providenciar as traduções, já que os pedidos devem ser apresentados em português e na língua do país que os receberá; e uma persistente dúvida sobre a possibilidade de a autoridade policial poder ou não ser titular de um pedido de cooperação. Segundo o delegado, uma “lenda” corrente nas polícias civil e federal é de que elas não podem fazê-lo. Por isso, segundo ele, entre os 50 pedidos feitos pela Justiça Federal em seu levantamento, a maior parte tem por detrás um pedido da autoridade policial. “A autoridade que pode fazer o pedido de cooperação jurídica internacional é aquela que poderia fazer o pedido no seu próprio país”, explicou. “Todo pedido que pode ser feito aqui, podemos fazer também na grande maioria dos países. Existem pouquíssimas exceções, entre as quais a França, que prevê no texto do acordo ou nos memorandos de entendimento que apenas as autoridades judiciárias e membros do Ministério Público podem ser titulares da cooperação.”
As mudanças estão para breve, segundo Saadi. Ele afirma ter se reuniu como o delegado Álvaro Palharini, da Coordenação Geral de Polícia Criminal Internacional do DPF, que, segundo Saadi, demonstrou querer implantar uma nova postura no departamento, não só estimulando os colegas como também ajudando na formulação dos pedidos.
Ele ainda pretende incentivar o atendimento imediato dos pedidos que chegam de autoridades de outros países. De acordo com Saadi, Palharini reconhece que nem sempre isso ocorre com a agilidade devida. “Um pedido de cooperação de outro país chega e vai para o fim da fila. Como temos outros inquéritos para nos preocupar, esquecemos que esses países que nos mandaram pedidos, e que nós também vamos mandar. Se demorarmos em cumprir aqui, eles vão demorar em cumprir lá. Dos pedidos de cooperação internacional em geral, 80% são de autoridades brasileiras e apenas 20% são de autoridades estrangeiras para o nosso país”, contou.
Enquanto no Brasil há demora no atendimento de pedidos estrangeiros, as solicitações feitas a outros países, segundo Saadi, são respondidas em prazos que variam entre seis e sete meses. “Não é rápido”, admite. Mas ele relembra que “não são mais dois, três ou quatro anos, como se falava que ocorria antigamente. Nós, às vezes, demoramos cinco ou seis anos para fazer uma oitiva, porque a nossa pauta está cheia, porque, na data marcada, há uma operação e a oitiva precisa ser desmarcada. Um documento vindo do exterior não demora tanto tempo.”
(Conjur)